17.10.07

 

Os Nomes da Guerra



Assisti ontem ao debate sobre a série que Joaquim Furtado vai apresentar na RTP, relatando com imagens de arquivo o que foi a guerra dos portugueses em África, entre 1961 e 1974, nas três frentes em que ela se desenvolveu, Angola, Guiné e Moçambique.

O programa que J. Furtado elaborou vai certamente reacender discussões, acordar velhos traumas, quiçá mesmo reactivar ódios. Oxalá, o programa não decepcione. Foram muitos anos de trabalho, parece que 10, gastos em pesquisas e preparação, para reunir material inédito, imprescindível para que os portugueses de hoje possam formar uma ideia aproximada daquela ingrata e inglória guerra e do que ela representou para as gerações que a viveram.

Sinto-me sempre dividido quando toco neste assunto: reprovo a falta de visão de Salazar, mas reluto em dar razão ao outro lado, àqueles que combatiam contra Portugal enfeudados a potências que apenas aguardavam a sua hora de tomar parte no espólio final do mais velho Império europeu.

Bem sei que nas guerras cada lado deita mão aos apoios que consegue angariar, nem sempre aos que gostaria de ter. E, no caso vertente, o espaço de escolha era estreito. Também me repugna o papel a que os EUA, nesta guerra, se prestaram, incitando à revolta bandos armados totalmente impreparados para assumir eventuais responsabilidades de governação de territórios tão vastos, ricos e, por isso mesmo, alvo da mais despudorada cobiça.

Mas, na guerra, tudo se torna possível e todos os bons sentimentos, todos os códigos de honra, todos os critérios podem ser subvertidos. Basta que nos lembremos da loucura Nazi, na Alemanha civilizada do século XX ou do desvario comunista perpetrado a coberto dos mais nobres ideais de redenção da Humanidade.

Este prurido de consciência inelutavelmente me surge todas as vezes que se discute a Guerra de África, que, para mim, é também a do Ultramar e não a Colonial ou de Libertação, como lhe chamaram os dirigentes dos Movimentos de Guerrilha, na época invulgarmente assanhados na sua linguagem política.

Acho avisado que não se tenha optado pelo título exclusivo de Guerra Colonial, demasiado vincado ideologicamente e preferentemente utilizado por quem não a fez ou a fez contra o país colonizador.

Claro que ela também não era a de mera missão de soberania, patrulhando territórios e fronteiras, como teimava o antigo regime, que, obstinadamente, deixou passar todas as oportunidades políticas para ensaiar uma solução política para o conflito.

Coisa que, acredito, tampouco seria fácil, porque a Guerrilha estava toda ela subjugada à estratégia das superpotências que se digladiavam na Guerra Fria, usando os seus peões à roda do globo, em busca de influência, novos aliados e, no fim, de mais mercados propícios às suas economias em expansão.

Em todo o caso, um poder político mais sensato teria, pelo menos, tentado explorar outras vias e, logo no início do conflito, sem deixar apodrecer a situação.

Todavia, outros, aqui na Metrópole, se terão convencido de que a Guerra poderia durar cem anos, o que, de resto, lhes seria indiferente, visto que se encontravam garantidamente isentos do esforço que o conflito implicava.

Eles e os seus familiares estariam sempre a salvo, a bom recato, de chatices e demais incomodidades, algures, num qualquer gabinete de ar condicionado, enquanto uns maduros, aventureiros, idealistas ou desgraçados aguentariam com a parte desagradável da tarefa.

E, assim, neste ledo engano e progressivo desleixo se chegou a Abril de 74, culminando num geral desinteresse em que toda a trapalhada foi possível, com os mais habilidosos, contudo, a cumprirem a sua missão, que era a de facilitar a entrada dos territórios, rapidamente e em força, na órbita soviética ou chinesa, ou em ambas repartidamente.

Nestas circunstâncias, pode dizer-se que o esforço dos portugueses, civis e militares, foi de facto despendido em vão. Ninguém soube honrar os mortos, nem acautelar os interesses dos seus compatriotas que viviam naquelas terras, alguns havia várias gerações, com escassa ligação real ou até afectiva com a Metrópole. A cada um, portanto, a sua responsabilidade.

Salazar e Caetano não souberam ou não quiseram buscar vias políticas de resolução do conflito. Mas o Poder Revolucionário pós-Abril de 74 tampouco respondeu como devia às exigências daquele momento histórico, optando pela solução mais fácil, que era a entrega, sem contrapartidas, do Poder aos movimentos radicais da Guerrilha, que não estavam nada dispostos a participar em consultas democráticas às populações para decidir do futuro político dos territórios.

E o resto do mundo também não se incomodou nada com isso, todos esperançados em colher o seu pedaço, após a saída das autoridades portuguesas.

Já não foi assim, nas descolonizações subsequentes de territórios africanos : Namíbia e Rodésia, em que foram organizados processos de consulta democráticos, com a participação de vários partidos e não só dos que haviam contestado pelas armas o anterior Poder.

Não se vê, por isso, porque devamos considerar o nosso processo de descolonização como digno, muito menos honroso ou exemplar, como alguns, em delírio, chegaram a proclamar, mesmo que aleguemos a crítica situação herdada.

É sempre muito cómodo lançar sobre os que nos antecederam o odioso de tudo, das causas e das consequências dos desastres políticos, quando, tendo podido evitá-los ou minorá-los, nada para isso fizemos, por inépcia, incúria ou por deliberado propósito em servir objectivos alheios de potências apostadas em soluções que convinham aos seus próprios desígnios e nada beneméritas intenções, como logo a seguir todos puderam exuberantemente comprovar.

Enfim, o assunto tem características controversas. O episódio que hoje passou, o primeiro de uma série de 18, já deve ter incomodado bastante muitas sossegadas consciências.

Veremos se os próximos episódios confirmam o equilíbrio sensato prometido por Joaquim Furtado, de quem se conhecem antigas inclinações esquerdistas ou terceiro-mundistas, coisa que também não será de admirar, quando até correm por aqui excertos de vídeos com declarações, agora surpreendentes, do então jovem aguerrido militante maoísta, actual respeitável Presidente da Comissão Europeia.

Vociferava, na ocasião, o rebelde maoísta contra o Ensino burguês, anti-operário, certamente retrógrado, reclamando contra a imposição do Serviço Cívico estudantil e pugnando pela entrada imediata de todos os estudantes na Universidade, ainda que burguesa, para infortúnio deste azougado moço, na altura, algo transviado nas ideias, pecado de que procurará hoje redimir-se, passando-se de armas e bagagens para o lado oposto extremo delas, pelo visto com assinalável êxito, gozado do conforto dos gabinetes da sua altaneira torre bruxelense.

Sigamos, pois, não o cherne, como aconselhava o ladino O’Neill, mas as cenas dos próximos episódios desta impressiva série que a RTP nos oferece, em horário decente, habitualmente reservado às xaropadas das telenovelas.

Por uma vez, saudemos o serviço público da RTP, normalmente um brinquedo de luxo, nas mãos habilidosas do governo «socrático».

AV_Lisboa, 16 de Outubro de 2007

Comments:
Estou de acordo com a sua extensa explanação e gostaria de acrescentar.

Também não tenho qualquer complexo de Portugal ter sido um País colonialista: A Inglaterra tem Gibraltar (no Sul de Espanha), as Malvinas (na costa da Argentina)...; a França tem a Guiana Francesa (na América do Sul) e várias ilhas no pacífico; tal como os EUA. Porque não são consideradas colónias? As suas metrópoles estão geográficamente tão longe.

Na realidade, quando terminou a 2.ª Guerra Mundial o mundo ficou ainda em "Guerra Fria" e quer os EUA quer a Russia "estavam de olho" nas nossas Colónias ou Províncias Ultramarinas e pretendiam que ficassem sob a sua esfera de influência, por isso ainda que Portugal tivesse abandonado aqueles territórios, a guerra continuaria neles, tal como continuou até ao fim da "Guerra Fria".

No entanto Portugal não seria capaz de manter indefenidamente a situação e melhor seria que tivesse preparado a sua saída para que não fosse tão dramática e poderia ter sido ainda bem pior se as independências se tivessem dado por via de derrota das tropas portuguesas: Aí seria de esperar-se um verdadeiro "banho de sangue"; a língua portuguesa não teria ficado como língua desses países; as relações entre os países teriam ficado cortadas (como aconteceu com a Índia até ao 25 de Abril).

Os Portugueses poderão agora, se o desejarem, voltar a apostar nesses países, embora com uma postura não colonialista.

Zé da Burra o Alentejano
 
Que o programa possa acordar velhos traumas e reactivar alguns ódios, acredito, mas reacender discussões, não.

Os portugueses podem ver estes episódios televisivos, mas julgo que ninguém vai perder tempo a comentar.

A guerra do Ultramar é daqueles assuntos em que os portugueses têm, desde há muito, a perfeita noção de que enfiaram um "barrete" monumental, que lhes foi metido pela cabeça abaixo com a ajuda de muitas mãos, desde os incapazes do regime salazarista a alguns finórios pós-25 de Abril.

E ninguém gosta de sentir que foi enganado, sobretudo quando tem a forte suspeita, senão a certeza, de que se deixou enganar que nem um patinho.

Por isso, o melhor é não falar no assunto.

Sokal
 
caro antónio viriato cá vim à sua tasca!gostei bastante e vou acrescentar o seu blog à minha lista de links.abc
 
Fui combatente na guerra do Ultramar durante seis anos. Mas não assisti ao programa e nem tenciono assistir. Estou farto de ignorantes.
 
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